Com Elisandro Lotin de Souza. Sargento da PMSC. Presidente da Anaspra – Associação Nacional de Praças Segurança pública tem sido objeto de grandes e calorosas discussões nos mais variados espaços públicos e privados. O tema foi decisivo no debate eleitoral e contribuiu para vitórias políticas algumas acachapantes. Terminada as eleições, assimilados os discursos retóricos e envolventes, declarados os vencedores(as), passa-se agora para as montagens de governos e as estratégias que buscam implementar aquilo que foi “vendido” como sendo a solução mágica para o problema público da violência que impõe angústias e gera privações para os cidadãos e, gera custos sociais, financeiros e humanos irreversíveis e, com isso, impede o desenvolvimento da nação e dos Estados.
Neste sentido divulgam-se todos os dias conversas e reuniões entre eleitos, nomeados e gestores da área e, não obstante a realidade de apoio dado aos vencedores por parte dos profissionais das bases das polícias estaduais, em nenhum momento, pelo menos até agora, falou-se sobre a situação destes milhares de mulheres e homens que sim, estão doentes e precisam de ajuda. Por todo o Brasil irrompem todos os dias notícias de policiais, bombeiros e guardas municipais que, ignorados em seus direitos humanos mais básicos (salário digno ou em dia, saúde, moradia, condições de trabalho dignas, jornada de trabalho justa, equipamentos de proteção individual adequados, etc.), e no limite, tiram sua vida ou são obrigados a se afastarem para tratamentos de ordem psicológica, mas, sobre isso, nada, nenhuma palavra ou gesto que denote a busca por mudar esta realidade que só é conhecida por quem vive o dilema. Daniel Cerqueira, em texto recente aqui no Faces da Violência, mostrou que os policiais brasileiros morrem 3 vezes mais por suicídio e 19 mais por assassinatos do que os policiais dos EUA; e matam 7 vezes mais. Há algo de muito errado na nossa pátria amada, Brasil. Alias, é preciso dizer: o Estado brasileiro, não obstante legislação que determine o contrário, dificulta, esconde e camufla as informações acerca da saúde e das condições de trabalho destes profissionais, o que configura um infração a lei e uma irresponsabilidade. Conseguir dados sobre esta dimensão da atividade policial é das tarefas mais urgentes porém complexas. Em todo o país, não há sistemas de informação e/ou interesse em lidar com transparência com o problema. Os policiais brasileiros são silenciados em suas dores e em seus direitos. O fato é que o homem e a mulher da segurança pública nunca foram objeto de uma ampla e realista discussão sobre condições de trabalho e continuam a não ser pois não estão no radar ou na agenda dos eleitos. E, neste sentido, ao ignorar esta realidade, quaisquer projetos, principalmente os que indicam o “mais do mesmo”, não surtirão efeito algum no sentido de controlar o medo e a violência. Isso, para além de ser um fato, é também um desrespeito e um perigo pois, ao deixar o ser humano policial, bombeiro e guarda municipal jogados à própria sorte, o Estado ignora aquilo que é mais básico em termos de governança pública da segurança: humanização das relações internas, reconhecimento de direitos e garantias básicas e valorização dos profissionais da área, principalmente os do “baixo clero” que, amordaçados em seus gritos que são por códigos disciplinares draconianos, sequer podem expor suas realidades sem correr riscos de punições as mais diversas. Democratizar e humanizar a segurança pública passa obrigatoriamente por revelar que não existe policial, guarda ou bombeiro herói; passa por respeitar os homens e mulheres trabalhadores da segurança pública que foram e são ignorados pelo Estado brasileiro e isso se faz com o reconhecimento das vulnerabilidades humanas e sociais destes profissionais e com o consequente cumprimento de leis internacionais e nacionais, como por exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição da República Federativa do Brasil, que completou 70 anos na última semana. Pensar a segurança pública do presente/futuro é reconhecer que esta questão não diz respeito apenas às polícias (gestores) e que não há oposições entre um direito social básico (segurança publica) da população, Direitos Humanos e direitos dos profissionais da área. Colocar o debate nestes termos é incentivar antagonismos que se originaram a partir de incompreensões conceituais destes temas por parte de grande parte da sociedade (incluindo os próprios profissionais da área), quase sempre aquela que também é vítima da omissão e do desrespeito do Estado no que diz respeito aos seus direitos humanos e sociais mais básicos. De modo surpreendente, o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), em vigor desde julho deste ano, prevê a incorporação de um subsistema chamado Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional e a Política Nacional de Segurança Pública, recém aprovada e que tem caráter vinculante e exige que as Unidades da Federação se adaptem, em dois anos, às regras do SUSP, também prevê um eixo específico para a valorização dos profissionais da área, com 15 objetivos/meta. No entanto, é interessante notar que nenhum governante eleito e/ou as autoridades por ele escolhida para chefiar a segurança pública priorizou esta dimensão. O que há, até o momento, é retórica político-eleitoral e pouco compromisso efetivo com a vida dos policiais brasileiros. No mês em que se comemora 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos parte significativa da população brasileira ainda luta para que estes mínimos direitos de todos os humanos sejam integralizados, e, entre estes subcidadãos, estão os milhares de policiais, bombeiros e guardas municipais que, na linha de frente, observam, por conta da construção jurídica e ideológica que os rege, seus direitos humanos sendo ignorados e surrupiados, o que os coloca também na condição de vítimas marginalizadas sob o domínio de “autoridades” que não se cansam de se envergonhar e envergonhar todos os trabalhadores do Brasil, e pior, permanecendo impunes e ditando as regras (deles, por óbvio). Os profissionais de segurança pública, principalmente os da base, ano após ano convivem com as demonstrações de violência do Estado e da sociedade, sendo exigidos destes, serenidade, respeito à lei e a ordem. São vítimas de assédio e de condições desumanadas de tratamento e trabalho e, mesmo assim, são rigorosamente disciplinados. Quanta presunção e quanta pretensão destes que comandam os destinos da nação a custa do sangue, do suor, da humilhação e da miséria de todos nós.
Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo